quinta-feira, 27 de maio de 2010

O_VELHO

Trecho de "Cordel Mineiro", de vitor hugo romão
O_VELHO -Aquilo, nem num eram modos de falar com gente de cidade.-Ele não era opilado nem nada, mas podia que sofresse de forgo curto: sempre afadigado, uma ansiedade constante de estar sempre fazendo as coisas. Armava mundéu pra paca e tatu, construia chiqueirinho de estranha arquitetura, heia de labirintos pra caçar os nhambus xeretas e dava tudo por um dia inteiro passado na espera de um estaleiro, girau de paca. Capivara ele matava no carreiro com armadilha de canhão. Podia que tivesse bichas que arvoroçava de vez em quando, quando comia semente de abobora. Era chegadinho num parí pra pegar peixe, entancando o rio, que terminava numa esteira de carro de boi ladeada por caniços. Raro o dia que não encontrava uma piaba ou tabarana pro almoço, o mais era peixe pequeno, curimba, campineiro e tambiú. A noitinha era a hora dos bagres e mandís, nos poções fundos dum sumidouro numa volta de rio. A traira, pescava nas vazantes ou nos remansos de rio largo. Ali, passava horas escogitando os misterios da vida. Os pensamentos avoava longe. O velho encabulado. Ali, aonde que a curva do rio Cabo Verde, barra do corgo Assunção, no corgo da bomba, terras altas do Cachapava, morejava o Rumãozinho, o seu nome dele de José Romão, mas de sobrenome incerto ou duvidoso de algum alguem saber correto como que chama o nome dele. Porcerto o nome não sabido, podendo que seje Agripino ou Afrosino, os parentes nenhuns pra dar informação de estado civil, nem certidão de pia batismal, nem um nada sobre sua pessoa dele. A bem da verdade, não importa sequer um nada. Consta que parente dos Umbelino da rancharia ou conão dos Beijo da Ponte Alta. Vizinho dum Adolfo Vilela, homem de posses, um despotismo de terras montante do rio afora. Parente duns Iquitas, uma familiagem muito grande de gente dos Figueiredo da Divisa. Tinha o Joaquim Iquita, de nome Joaquim dos Santos , o João Marcolino ou Paulino e o Simeão e o resto dumas mulher solteira, muito antigas. Não era velho nem moço: miseravel de passar mal de boca, desses que comem bastante no almoço, pra se esquecer do jantar. Nem se podia dizer que era velho de tudo: no dizer de todo mundo, uma pessoa entrada em anos, de meia idade, com muitos janeiros as costas e um ar de poucos amigos. Na feição magra, um ar de tristeza permanente, mas não reclamista da vida. Na cara magra, um papo insolente, inconfundivel, impossivel de um não não perceber o corpo estranho no primeiro relance: depois disfarça. Mas desses de bolinha, semovente, que sacode quando a pessoa proseia. Solteirão inveterado, embirrado, tirava leite dumas vaquinhas magricelas, os bezerros tambem magruços, tal e qual, do pouco leite deixado, mais por misereza do dono, um unha de fome. Do leite, fazia queijo pra vender na cidade: só que nos fins de semana, quase não aparecia, de tão sistemático. A restea, vivia reclamando das despezas: umas mingueras, constando até, que passava mal de boca. As roupas surradas e vestida sem passar a ferra de brasa, lavava num quarador com tabua de batedor num corguinho do fundo de casa perto duma mina d´agua. O sabão de pedra, preto de bola enrolada em palha de milho, ele mesmo fazia de dequadra de cinza de fogão e gordura rançosa de porco e os restos de pacuera, miudos e tripas de porco, sobrados da espremeção de toicinho. As carnes, conservava por semanas na gordura talhada, fritas e costuradas com linha. Fazia linguiça e chouriços de sangue de porco. Do leite desnatado em desnatadeira Alfa-Laval, extraia o creme para o fornecimento semanal a fabica do Bergander, das sobras, a manteiga batida em corote de madeira. O soro corria por uma bica, direto pro chiqueiro, onde chafurdavam uns poucos porcos tratados a lavagem e bosta dele próprio, de tão miseravel. Uma cordinha de gatos, bebia o soro até se fartar, os quatro pés apoiados nos dois lados da bica. De tarde apartava as vacas e depois ia pro paiol descascar milho. Fazia o fubá no moinho rustico de setilha e pedra de mó, misturarava ao soro pra tratar dos por porcos. Os porcos de mangueiro, viviam chorando de fome. Tratava com milho em espiga mesmo, sem descascar. Ele não era antipático nem nada, muito menos oferecido, tal e quanto esse povinho xereta que anda lamberetando a vida alheia, antes, uma pessoa sombria e taciturna. Nem era rastandor de mala, de que faz e acontece, mas uma pessoa sizuda; nem alcoviteiro e de mexericos de leva e traz, mas um homem recolhido e vergonhoso que preza as grandezas machas do verdadeiro capiau: homem de fala grossa e o proseado gutural e emotivo, manso e altissonante, sobretudo, que vive dentro dos preceitos de religião. Caseiro, um homem de levantar cedo, de dormir com as galinhas, não sem em antes de lavar os pés e comer leite com farinha. Mas tinha lá seus modos dele de ficar horas cismando quando sentado na masca ou num tronco de coxo. Muito sistemático mas não tinha por habito reprovar conduta dos outros nem tinha soberba ou fazia pouco causo, nem repunava das coisas: não desdenhava pra poder comprar, antes, disfarçava um otimismo com as pequenas coisas da vida:-Maravilha! tudo azul, em cima. Ali naquele ermo, aonde sabe la que Judas perdeu as botas, contava suas máguas da ocasião de amarrar cachorro com linguiça, tempo do zagaia de gancho. O velho chorava as pitangas do tempo do onça e aquilo nem num era vida de gente: vida de cão danado. Nos versos do poeta e cirurgião dentista, Beto Ornelas: Vida alheia vida feia vida cheia vida louca vida pouca vida toda vida tola vida a-toa vida boba vida porca vida torta vida morta vida amarga vida de farta vida parca amarga vida Magra vida mar de vida amar a vida Margarida De seu, tinha pouco, uns andrajos: um cachorro sarnento por companhia, passava a pão e agua: o mais forte, uma sopa de inhame, coisa sem sustancia. Carne, nem pra remedio. De galinha então, só quando um dos dois estava doente. Vivia no escuro, a luz de lamparina, umas candeia escura, cheia de picumã. Dormia com as galinhas: antes do galo cantar, já estava tirando leite, enrolado num cobertor surrado, enterradas as canelas no barro do curralzinho, até o joelho. Dali, tirava uma tarefa de cinco varas duma roça de milho tiguera, dum chão pedregoso, em antes de fazer o magro almocinho, o feijão fervendo na panela de ferro. De longe, o ruido metálico da enxada sem corte, tirando fogo nas pedras redondas. Deixava a casa escancarada, pra todo mundo ter idéia que o dono por perto: ladino que só. Companheira nenhuma pro aconchego dos ossos: dormia com uma cabrita. Mas era resistente, no cerne, o tempo não vencendo a sua magreza: jamais ficava doente de nenhum incômodo: apenas o pigarro duma bronquite crônica, resultado de longos anos do uso de pito de barro. Mas fazia presença, com seu cavanhaque de rabo de milho. Era independente, num tinha ninguem por ele, nem carecia de favor de extranho. Magro, mas impoluto, sistemático até o âmago, autoritario, quase absoluto. O que tinha pra dizer: não deixava a batata assar, não ensaiava pra dizer desaforos: falava alto pra todo mundo escutar, não tinha papas na língua. Não gostava de levar desaforos pra casa, nem de comer nada amanhecido. Não pedia a ninguem de gostar da pessoa dele: era único, impar, digno, na sua misereza dele. Seguro ao extremo, avarento: tinha dinheiro a juros. Mas apenas um homem na sua condição: integro. Serviçal ao extremo, mas do jeito dele: áspero. Pois num é que sucedeu de num levantar mais da cama dele pra tirar leite! ficou entrevado das pernas, arrastava pelos cômodos da casa, apoiado numa manguara, uma especie de cajado. As vacas, misturou tudo com os bezerros. Os porcos invadiram a dispensa, pros restos de lavage. O mato deu de invadir os terreiros, o capim principiou de nascer dentro de casa. Assim, viveu muitos anos até que chegou o dia dele: a morte o levou sem nenhum estardalhaço, como sucede a qualquer um de nós, cristãos viventes, nessa vida. O romãozinho, como era assim chamado, era desses velhos sovina, miseravel até no último: desses de guardar dinheiro no ôco do pau de barrote, as veses no santo do pau ôco. Pois não é que quando morreu, deixou um testamento escrito assim: "Entrego minh'alma à Deus, meu corpo à terra fria Os culhões pro Padre Antonio e a pica pra tia Maria." Aí, o velho foi falando a prosa dele, sem a pressa nenhuma nada, até que a historia chegou no deserto: não estava nem podendo com a gata pro rabo. Mas a sua vós dele se dissolvia como que tragada pela areia do deserto da sua juventude: a imagem de catingueiras, cactos e cascavéis. Os olhos semi-cerrados, trespassando a gente, como um imenso largato, a papada suspensa, longe no tempo, o olhar travesso, engraçado e pasmo, parado, congelada a imagem, os seus meneios de cabeça: ridículos. A pequena praça da corrutela, vazia de vivalmas. O tempo parado nos ponteiros imóveis do relogio do velho campanario. Despertou solerte, como se tivesse herdado subitamente a velhice do velho sem a sua juventude dele. Depois de uma eternidade, como fazia o Zeca Zico, no seu ar soronho, disse para ninguem: -Ó, o peso imenso desta vida de viver por rumo! Retornava ao caminho de volta, com a minuciosidade implacavel das coisas gravadas pelo destino. Disacursuado da vida, fez que sim com a cabeça e disse:-Não! Os olhos do velho, me trespassamdo com seus olhinhos de largato: só, e só no deserto, as pessoas fazem perguntas impossiveis de responder e que realmente interessam. Padecia da lembranças da juventude distante de sua antiga mocidade: dos erros, das vacilações, das tentações cedidas. Mas alimentava o espírito com as visões lúdicas daqueles tempos gostosos: -Eta pustema de vida disgramada! só lhe restava chorar a antiga mocidade, enquanto um pranto sereno fazia aflorar às pálpabras uma gota de amargura: inexoravelmente, o tempo não podia retrogir. nem das aventuras de seu tempo futuro negado. Era, em nesses descaminhos do tempo, perdido nos subterraneos da memoria, que com sábias enciclopédias, com centenares de milhões de milhares de respostas, para a falta de uma única, só e definitiva pergunta: Ó Deus! que é a vida?-Mas, com que cara e com que roupa eu vou me responder? quê que eu vou fazer? A nudez, não costuma mais afetá-lo, como nos velhos tempos de outrora: a vertigem do sonho, o prazer da lembrança não pedida, chegada de surpreza. Homens adultos e cultos, discutindo com ares judiciosos: seus passos escangalhados, trôpegos e esgalepados. Aí, ele recuou prum canto, amuado. Se encolheu num canto triste, uma cantiga de ladainha, gungunava. Ficou entoando cantigas tristes, dos tempos de outrora, não mais escutadas em o nenhum lugar, antigas, de muito que antigamente, passadas no oco tempo. Nenhum ninguem num tinha que num ia de dar ouvidos pelas prosas sonsas dum velho imprestavel, ancestrais. Alguns velhos mineiros fazem isso sempre. um recolhimento profundo, o olhar pra dentro, trespassado da lembrança toda do tempo feliz da vida. Um olhar de bondade, esperançoso. O gesto pequeno, sem exagero de rompancia nenhuma nada, maneiro de nenhuma agressividade, ar superior mas tímido, na desimportancia de enorme grandeza. Está sempre pensando na gente sua e nos seus trens. Uma imensa bondade, nos seus olhos tristes de velho. Nunca que brigou. Jamais bateu em ninguem, muito menos num passarinho que seje. Sempre bom, a prosa muito mansa, esperando a vez com paciencia. De seu, o que tem é nada: só trapos, bugigangas. Guarda só lembranças. E no entanto, seu ar é sombranceiro, majestoso até. O terninho de brim, digno e limpo, solene e aprumadinho todo todo, de chapéu. As mãos asseadas, unhas aparadas a canivete, com cuidado e lento. A nenhuma rompancia, pacífico que só: palavras boas, a presença quase que desapercebida. Gosta de contar historias e nisso era mestre.Mas fala de coisas ancestrais, eles logo acham sua prosa dele desbotada. Então ele fica apaixonado: se retira e cala, prum canto sombrio, um ermo, encostado num fundo de grota, num vazio desprovido. Recolhe-se a sua casca de caramujo. Não se mostra pra nada, nem pra o nenhum ninguem. E acaba numa vida sem brilhos, longe da cidade, um nada de aparencia: só simplidade. Alí fica como ave reclusa, esperando o tempo vencer, olhando o passado, resmoendo estomagos. Redundante, recorrente, volta e meia as coisas sempre voltando à tona. Antes era um bisca de ruim, um íngua. Depois que ficou velho amansou. Adotou uma prosa pausada, um proseado rouco, grosso e autoritario: deu pra ficar solene. O alheiamento, o autismo. eu sou de lá do sertão, por isso mesmo: eu quase não tenho amigo, eu quase que não consigo ficar na cidade sem viver contrariado sou como rês desgarrada, só, na multidão, boiada: caminhando a esmo. Ele sempre fazia isso: o recolhimento por uns dias no hospital, por ordem médica, pra recompor. O efeito dos medicamentos o distanciava do mundo. Principiou de gostar da brincadeira, começou de amiudar, passaram a tres, quatro dias, o retorno à normalidade do dia a dia, foi se tornando penoso. A perda do interesse pelo contato com as pessoas, cada vez mais mergulhado dentro de si mesmo. Os negocios, paralizou alguns. um passo a frente, dois atraz. Desmobilizou. A esclerose multipla, o gosto pelo afastamento, natural. Aquilo, um flagelo, um sanapismo. Aquele era um sertão, um lugar triste, um ermo, um fim de mundo esconso, sem fim, perdido no meio do vazio petrificado. Do que ele fica triste e disacursuado, não é com a velhice física, o entrevamento, a falta de mobilidade, quando os menores gestos ficam custosos, como levantar dum banco: por isso não sai pra fora de casa, fica só, só fica quentando fogo, em noites que não tem nunca fim. Nem com a surdez, a perda dos dentes, a careca, o mau halito, o cheiro de velho, das feridas, as recorrencias, nada disso: ..., isto até que passa. Começa até a encontrar prazer no descansar os ossos, cismar silencioso, podendo ficar isolado, só e seus pensamentos, a cabeça livre de vagar por territorios longínquos, vasculhando reservatorios profundos da lembrança. Buscar fatos antiquíssimos, de muita vangloria, uma lembrança fina de coisas gostosas da infancia distante, da remota mocidade.

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